Nutrição nos Esportes de Ultra-Resistência
Qual a importância da alimentação no esporte de ultra-resistência?
A estratégia nutricional é um dos fatores mais importantes para o desempenho em modalidades de ultra-resistência, como o Triathlon Ironman, corridas de ultramaratona ou voltas ciclísticas.
Durante o treino ou competição, o corpo depende do uso tanto do carboidrato como da gordura para a geração de energia, sendo o metabolismo da gordura predominante nas provas de menor intensidade e longa duração e o carboidrato predominante nas provas mais curtas e intensas.
Entretanto, mesmo em provas muito longas, em alguns momentos a gordura não será suficiente para suprir toda a demanda energética.
O estoque de gordura não é fonte de preocupação, uma vez que sempre serão suficientes para o exercício. Entretanto, os estoques de carboidratos serão facilmente depletados, caso não sejam repostos ao longo da atividade: eles são suficientes apenas para 60 a 90 minutos de exercício, ao passo que o recorde mundial do Ironman é de 7:35:39.
Além da reposição de carboidratos, a reposição de água e eletrólitos também é fundamental. Os eletrólitos (sódio, potássio, magnésio) são perdidos com o suor e a transpitação e, caso não sejam repostos, o controle hídrico e a função dos diversos órgãos do corpo ficam comprometidas.
Além da alimentação antes, durante e após o treino, é preciso considerar também que o gasto calórico total ao longo do dia é bastante elevado e exige uma estratégia minuciosa de reposição. Quando a ingesta for abaixo do gasto, a recuperação pós treino fica prejudicada e o desgaste se acumula treino após treino, podendo dar origem a lesões e aos sinais e sintomas característicos da Síndrome da Deficiência Energética no Esporte.
Demanda de carboidrato
A suplementação com carboidrato durante o treino ou competição é recomendada especialmente em atividades com duração superior a 90 minutos.
Nas atividades com duração entre 90 minutos e três horas, a reposição regular com bebidas esportivas (Gatorade, Powerade) se mostra suficiente e não exige estratégias muito complexas. Isso porque as reservas corporais serão suficientes para suprir a maior parte da demanda do atleta. Nem todo o gasto precisa ser reposto ao longo de uma prova, apenas o suficiente para acabar o exercício antes que as reservas sejam totalmente esvaziadas.
A estratégia nutricional se torna progressivamente mais complexa nos exercícios mais prolongados, já que a diferença entre a demanda total de carboidrato e as reservas pré-exercício são cada vez maiores, exigindo uma reposição mais rápida.
Como regra geral, podemos considerar as recomendações seguintes para a reposição de carboidrato:
Duração do exercício | Consumo ideal de carboidrato (g) | Consumo mínimo de carboidrato (g) |
Até 30 min | 0 | 10 |
30 – 60 min | 0 | 20 |
1h – 1,5h | 20 | 30 |
1,5h – 2h | 40 | 60 |
2h – 2,5h | 50 | 80 |
2,5h – 3h | 60 | 90 |
3-6h | 75 | 100 |
>6h | 75 | 90 |
O problema é que a maior parte dos atletas têm dificuldade para ingerir mais do que 20 a 40 gramas por hora, em razão de problemas gastrointestinais. Sintomas gastrointestinais são muito comuns entre atletas de provas de ultra-resistência, com uma prevalência de 60-96% de sintomas graves relatados após competições da ultramaratona (Costa et al., 2017).
A reposição pode ser feita por meio de gel de carboidrato ou de bebidas esportivas. Para maiores informações de como fazer esta reposição, sugiro a leitura do nosso artigo sobre Bebidas Esportivas.
Treinamento com pouco carboidrato
Uma estratégia que tem sido muito usada por esportistas de ultra-resistência é de treinar com os estoques de carboidrato baixos, de forma a melhorar a eficiência para a utilização da gordura como fonte energética, para depois competir com os estoques de carboidratos completos.
Esta estratégia, de “treinar baixo, competir alto” de fato se mostra eficiente para a melhor utilização da gordura, o problema é que o desempenho ao longo dos treinos pode ser comprometida. Além disso, a recuperação pós-treino pode ser mais difícil.
Evidências de melhora da performance com a estratégia de “treinar baixo, competir alto” são bastante limitadas e variável de atleta para atleta, mas é uma alternativa válida especialmente para aqueles que costumam sofrer com o estômago ao longo dos treinos ou competição.
Carregamento de carboidrato
Outra forma de manipular os estoques de carboidratos é por meio da técnica de carregamento de carboidrato, mais conhecida por seu nome em inglês, “Carbohydrate Loading”. O carregamento de carboidrato envolve o aumento no consumo de carboidrato nos últimos 3 ou 4 dias antes de uma competição principal, ao mesmo tempo em que diminui o volume de treino.
O objetivo é aumentar os estoques de glicogênio para serem usados na competição, o que faz sentido nas provas com mais do que 90 minutos de duração e especialmente naquelas com mais de 3 horas.
A maior parte das pessoas possui aproximadamente 2.000 calorias armazenados na forma de carboidratos, seja como glicogênio muscular ou hepático, mas estes estoques podem variar bastante para mais ou para menos. Com a técnica de carregamento de carboidrato, os estoques podem chegar a 15 gramas por quilo de peso corporal, o que em uma pessoa de 70 Kg pode significar até 1050 gramas de carboidrato ou 4200 calorias de energia.
Nem todos os atletas toleram bem ou se beneficiam do carregamento do carboidrato. A quantidade de carboidrato necessária para fazer o carregamento também pode variar, de forma que qualquer estratégia neste sentido deve ser usada inicialmente em uma prova secundaria ou mesmo durante o período de treinamento.
Demanda de proteína
A proteína tem um papel fundamental de reparo e construção muscular. Toda vez que nos exercitamos, parte da musculatura é destruída, sendo depois reparada durante o período de recuperação pós treino.
Considerando-se o desgaste gerado a cada treino do atleta de ultra-resistência, é compreensível a importância da proteína na dieta destes esportistas. A quantidade de proteína necessária varia dependendo de fatores como sexo, peso e nível competitivo. Como regra geral, a British Dietetic Association recomenda que os atletas de resistência consumam entre 1,2 e 1,8g de proteína por kg de peso corporal por dia.
Para um atleta de 70kg, isso significa um consumo entre 84g e 126g de proteína por dia, o que é ultrapassado pela maior parte dos atletas. O problema é que o organismo não é capaz de utilizar mais do que 0,4g de proteína por Kg de peso corporal a cada refeição, de forma que esta quantidade de proteína precisa ser quebrada em até 4 refeições diárias. Ainda que isso seja possível de ser feito apenas com a alimentação regular, alguns atletas podem optar por fazer uma destas “tomadas” por meio dos suplementos de proteína.
O consumo de proteína intra-treino em teoria poderia contribuir para o reparo muscular. Para o atleta de endurance, no entanto, a concentração de bebidas consumidas durante o treinamento é um fator limitante, uma vez que altas concentrações de substratos para água, incluindo carboideratos proteínas e eletrólitos, pode causar desconforto gastrointestinal significativo ou deslocamento subótimo de água dentro dos compartimentos do corpo.
Como a proteína não traz benefícios significativos para o desempenho imediato no treino, habitualmente o atleta de endurance deve priorizar o carboidrato e os eletrólitos na reposição em treino. A adição de proteínas pode ser considerada em períodos de treinamento quando o foco na melhora da composição corporal está sendo priorizado em relação ao desempenho esportivo imediato, isso quando o atleta tolera esta proteína extra do ponto de vista gastrointestinal.
Demanda de gordura
Apesar de o metabolismo da gordura ser uma fonte energética importante para o atleta de ultra-resistência, os estoques do corpo são mais do que suficientes para suprir as demandas da atividade física, por mais longa que ela seja.
Ao mesmo tempo, a gordura aumenta o tempo de esvaziamento gástrico, o que pode aumentar o desconforto gastrointestinal. Assim sendo, o consumo de gordura deve ser minimizado na alimentação pré-treino e alimentação pós-treino.
Por outro lado, a gordura insaturada (“gordura boa”), presente em alimentos como nozes, abacate, azeite de oliva, gergelim, linhaça, abóbora, girassol e castanhas deve ser incluída nas refeições distantes do treino ou competição.
Hidratação nas provas de ultra-resistência
A estratégia de hidratação depende da modalidade esportiva, da intensidade e duração do exercício, das condições climáticas e de características individuais como idade, gênero, raça e peso. Ainda assim, dois atletas com características físicas muito parecidas e treinando juntos podem ter perdas líquidas significativamente diferentes, o que implica em diferentes estratégias de hidratação.
Existem duas correntes diferentes para a hidratação durante o exercício:
- Uma corrente defende que a sede é um mecanismo fisiológico eficiente para guiar a reidratação. Estudos sugerem que o atleta tende a repor entre 60 e 70% da perda de água, o que seria suficiente para manter as funções fisiológicas;
- Outra corrente sugere que o atleta deve seguir um plano pré-determinado de hidratação e que a sede só é percebida tardiamente, quando o atleta já está desidratado e que, portanto, não deveria esperar chegar a este ponto.
O desejo por beber água, ao que conhecemos como sede, é uma percepção que as pessoas têm a partir de sinais como boca seca ou irritação na garganta. Esta percepção pode ser gradualmente modulada a partir do comportamento: quando um atleta assume o hábito de beber água mais frequentemente, o cérebro passa a demorar menos para perceber os sinais de sede, como a boca seca. Para estes atletas, a sede tende a ser suficiente para guiar a hidratação.
O atleta deve ter por hábito prestar atenção na cor da urina para avaliar o estado de hidratação. Durante o treino, a melhor estratégia é a pesagem antes e após o exercício. Deve-se considerar que a estratégia foi bem-sucedida quando a diferença no peso for inferior a 2%.
Aos poucos, o atleta vai ajustando sua hidratação até que passe a finalizar os treinos dentro desta margem de perda de uma forma natural, sem um planejamento claro para a estratégia de hidratação.
Como planejar a alimentação para uma prova de ultra-resistência?
A alimentação antes e durante uma prova de ultra-resistência pode ser a diferença entre o sucesso ou o abandono no meio da competição, de forma que ela deve ser cuidadosamente planejada antes de cada evento.
Diferentes atletas podem responder de forma diferente a diferentes estratégias. Mesmo quando consideramos uma mesma prova, a estratégia de um atleta de elite que pretende completar um Ironman na casa das 8 horas deve ser diferente da de um atleta que pretende completar a competição em 13 ou 14 horas. Mesmo dois atletas de níveis muito próximos podem adotar estratégias bastante diferentes sem que um esteja certo e o outro errado.
A estratégia depende também das regras e características de cada evento, incluindo condições climáticas, horário da prova, relevo do terreno e da possibilidade ou não de ter uma equipe de apoio.
O ideal, desta forma, é que o atleta, juntamente com seu médico, nutricionista e treinador determinem possíveis estratégias e que estas estratégias sejam testadas regularmente durante o treino, para avaliar a resposta individual para cada uma destas estratégias.
Alimentação nas provas de endurance
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