Lesão do Ligamento Cruzado Anterior em Crianças
Especificidades da Lesão do Ligamento Cruzado Anterior na criança
A Lesão do Ligamento Cruzado Anterior (LCA) é incomum em crianças.
O principal motivo para isso é que nesta faixa etária o ligamento é mais forte do que o osso onde ele está preso (1). Assim, é mais fácil a criança ter uma fratura do que romper o Ligamento Cruzado Anterior.
Entretanto, quando acontecem, estas lesões inspiram cuidados específicos.
Adiar a cirurgia até a maturidade esquelética foi por muito tempo o tratamento padrão, devido ao potencial de a cirurgia de comprometer o crescimento ósseo.
Atualmente, a tendência é pela cirurgia precoce, na maior parte das crianças.
Por um lado, a prática clínica mostrou que a criança tolera pouco a instabilidade decorrente da falta do Ligamento Cruzado Anterior. Ao se optar por adiar a cirurgia, o preço pode ser alto.
Lesões secundárias na cartilagem ou meniscos aumentam muito com o adiamento da cirurgia (2). Elas têm potencial para comprometer o futuro do joelho de maneira muito mais definitiva do que o próprio Ligamento Cruzado Anterior.
Por outro lado, problemas relacionados ao crescimento ósseo se mostram incomuns, especialmente em crianças já na fase final de crescimento, que representam a maior parte das lesões.
No caso de crianças pré-púberes, onde a preocupação com o crescimento ósseo realmente se justifica, adaptações na técnica cirúrgica minimizam o risco de eventuais problemas.
Como é avaliada a maturidade esquelética no joelho?
A maturidade esquelética se caracteriza pelo fechamento da placa de crescimento ósseo (placa fisária).
Isso acontece durante a puberdade, período de intensa transformação no corpo da criança, que passa a assumir as características de uma pessoa adulta.
No joelho, esta maturidade é atingida por volta dos 12 ou 13 anos nas meninas e entre os 14 e 15 anos nos meninos. Neste momento, o joelho para de crescer, embora possa haver algum crescimento remanescente em outras partes do corpo.
O problema é que esta idade pode variar de pessoa para pessoa. Como exemplo, um menino de 14 anos pode ainda ter a aparência de uma criança e ter um esqueleto de criança, enquanto outro de 13 anos pode já apresentar o desenvolvimento físico de um adulto.
A avaliação do desenvolvimento físico e esquelético é fundamental para a escolha do melhor tratamento da Lesão do Ligamento Cruzado Anterior em crianças. A melhora forma de se fazer isso é por meio dos estágios de Tanner, conforme as imagens abaixo (3).
A preocupação com a placa de crescimento deve estar presente principalmente nos estágios I e II de Tanner. A partir do Estágio III, o joelho já atingiu uma maturidade esquelética que proporciona maior segurança para a Reconstrução ligamentar do joelho.
A maturidade esquelética também pode ser avaliada por meio de uma radiografia da mão e punho esquerdos para a avaliação da idade óssea (4).
A mão e o punho possuem diversas placas de crescimento que se fecham em uma sequência previsível. Assim, esta radiografia permite estimar em que fase de desenvolvimento esquelético que o paciente se encontra, ao que se denomina de idade óssea”. A idade óssea não necessariamente coincide com a idade cronológica.
Tratamento sem cirurgia da lesão do LCA em crianças
O tratamento sem cirurgia pode ser considerado quando todos os critérios abaixo estiverem presentes:
- Ausência de outras lesões associadas que exijam o tratamento cirúrgico;
- Criança sem queixa de instabilidade no joelho;
- Família e criança aceitam o afastamento das atividades de risco enquanto aguardam pela cirurgia.
Ainda assim, o risco de lesões secundárias continua presente, de forma que o custo benefício em adiar a cirurgia deve ser bem compreendido por todos os envolvidos.
A decisão pelo tratamento sem cirurgia pode também ser revista a qualquer momento durante o tratamento.
Riscos do tratamento sem cirurgia do LCA em crianças
A maior preocupação com o tratamento sem cirurgia é o risco de lesões secundárias nos meniscos ou cartilagem.
O risco de lesão no menisco é duas vezes maior quando a cirurgia é protelada por 5 a 12 meses, e quatro vezes maior após um ano (5, 6).
A capacidade de recuperação de certas lesões no menisco ou cartilagem é bastante limitada, mesmo com a cirurgia. Assim, o prognóstico futuro da lesão pode ser permanentemente comprometido.
Como é feito o tratamento sem cirurgia da lesão do LCA na criança?
Ao optar pelo tratamento não cirúrgico, o ideal é manter a criança afastada de esportes que envolvem mudanças de direção frequentes e contato físico com outros atletas, incluindo futebol, tênis, vôlei, basquete, handebol etc.
Tratar a lesão sem cirurgia é muito diferente de não se fazer nada. A reabilitação de qualidade é um componente fundamental do manejo da lesão do Ligamento Cruzado Anterior na infância, seja ele tratado com ou sem cirurgia.
Os conceitos da reabilitação, especialmente na criança pré-púbere, devem ser diferentes daqueles aplicados aos adultos.
A criança não responde a um trabalho de força com ganho de massa muscular. O objetivo deve ser a melhora do padrão neuromuscular, do equilíbrio e do controle de movimentos, o que exige um protocolo de tratamento específico.
O uso de joelheiras articuladas, muitas vezes vendidas como “órteses preventivas”, também se mostra ineficaz em reduzir o risco de uma nova lesão do Ligamento Cruzado Anterior em crianças e de muitas das lesões secundárias (7).
O problema é que a maior parte dos pacientes com esta lesão é bastante ativa e, na prática, retornam para tais atividades assim que se sentem aptos para isso.
Manter-se ativo por meio de modalidades de menor risco para o ligamento, como a bicicleta ou a natação, pode ser uma boa opção. Estas atividades devem ser sempre estimuladas.
Tratamento cirúrgico da Lesão do LCA em crianças
A maior parte das lesões do Ligamento Cruzado Anterior em crianças deve ser tratada por meio de cirurgia. Algumas adaptações ou modificações na técnica cirúrgica devem ser consideradas, a depender da idade e do nível de maturidade esquelética.
Riscos do tratamento cirúrgico do LCA em crianças
A maior preocupação da cirurgia é o risco de comprometimento da placa de crescimento ósseo.
Isso porque, ao se usar a mesma técnica cirurgia indicada para adultos, é necessário realizar um furo no osso que, na infância, cruzaria com a placa de crescimento.
Felizmente, a maior parte das lesões ocorrem já próximo do fim do crescimento ósseo, quando o risco de comprometer o crescimento é mínimo (8).
A imagem (A) mostra um osso adulto, com a placa de crescimento já fechada; a imagem (B) mostra uma radiografia de um joelho infantil, com a placa de crescimento ainda aberta; a imagem (C) mostra os túneis ósseos para reconstrução do Ligamento Cruzado Anterior, pela técnica tradicional. Observe como estes túneis ósseos cruzam a placa de crescimento do osso, gerando preocupação quanto a eventuais problemas relacionados ao seu pleno desenvolvimento.
O problema é maior no caso de crianças que ainda não entraram na puberdade. Nestes casos, a modificação da técnica cirúrgica, por meio de procedimentos de reconstrução extra-articular / não anatômica, evita violar a placa de crescimento.
Isso permite reestabelecer a estabilidade do joelho sem maiores riscos para o crescimento ósseo.
O resultado a longo prazo costuma ser menos satisfatório do que a técnica transfisária clássica utilizada em adultos. No entanto, em caso de falha do novo ligamento, o paciente pode ser reoperado em um segundo momento, quando a segurança com relação à placa de crescimento é maior.
Qual o melhor enxerto para lesão do LCA infantil?
Diferentes enxertos podem ser usados para substituir o Ligamento Cruzado Anterior rompido.
Os mais utilizados são os tendões flexores do joelho (semitendinoso e grácil) e o Tendão Patelar. Entretanto, existem outras opções, incluindo:
- Aloenxerto (enxerto de cadáver);
- Tendão quadríceps.
O tendão patelar não é uma boa opção no paciente com esqueleto imaturo. Isso porque ele é retirado junto com um fragmento ósseo, o que poderia levar danos ao esqueleto em crescimento. Os aloenxertos também não têm resultados satisfatórios nesta faixa etária.
Assim, podemos dizer que a grande maioria dos pacientes infantis são operados com os tendões flexores.
O tendão quadríceps é uma opção a ser considerada, especialmente no caso de os tendões flexores não estarem disponíveis. Ainda que incomum, isso pode acontecer em decorrência de uma cirurgia prévia, por exemplo.
Reabilitação pós-operatória da Lesão do LCA em crianças
Existem muitos pontos de controversa na reabilitação da lesão do Ligamento Cruzado Anterior no paciente adulto. Nas crianças, as evidências são ainda mais escassas.
Uma das maiores dificuldades é que, na fase inicial da recuperação pós-operatória, o joelho deve ser protegido de movimentos de risco para o ligamento. Isso inclui especialmente os esportes de contato e aqueles que exigem equilíbrio e mudanças de direção frequentes.
O problema é que, no caso de pacientes muitos jovens, eles podem não ter maturidade e discernimento suficiente para entender a importância de respeitar os protocolos pós-operatórios(9). O papel da família é fundamental neste sentido e o paciente não deve ser operado enquanto isso não tiver ficado claro para todos.
Os exercícios da fisioterapia não devem seguir os protocolos desenvolvidos para adultos.
O ganho de musculatura é um dos pontos chaves da reabilitação no adulto. No paciente pré-púbere, a capacidade de ganho de musculatura a capacidade de ganhar massa muscular é limitada, devido à ausência do estímulo hormonal.
Por outro lado, elas podem ganhar força por meio de uma melhor adaptação neuromuscular (10). Em outras palavras, ela ganha força aprendendo a otimizar o uso da musculatura, ao invés de ganhar mais musculatura.
Isso exige um padrão específico de exercícios com baixa carga e maior número de repetição de exercícios em cadeia fechada (11).
Risco de nova lesão
O risco de nova lesão é a maior preocupação no paciente submetido a reconstrução do Ligamento Cruzado Anterior.
Os principais fatores de risco para novas lesões incluem:
- Idade jovem;
- Retorno para esportes de risco;
- Mulheres;
- Reabilitacão inadequada.
Estudos indicam uma taxa de ruptura do enxerto em crianças e adolescentes (até 19 anos) de 13%, além de uma taxa de lesão do Ligamento contralateral (joelho não lesionado) de 14% (12).
Ainda que as novas lesões não possam ser completamente evitadas, elas podem ser minimizadas por um programa eficiente de reabilitação pós-operatória e respeitando o tempo necessário para retorno aos esportes de risco.